quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Você e ele

Olha só que coisa: às vezes você é a primeira pessoa que ele vê logo que acorda. Você entra no lugar onde ele dorme e chega ao ponto de acordá-lo. Quer que ele te conte como foi o seu dia ontem, sua noite, o que sentiu, como se alimentou, se está com alguma dor. Você tem a ousadia de querer que ele te fale das dores dele, dos gostos, das próprias impressões a respeito de si mesmo e de como vem passando. Você chega ao cúmulo da indiscrição de perguntar a respeito de suas necessidades mais fisiológicas e íntimas.
E ainda assim você tentar manter certo nível de impessoalidade. Nada de perguntas pessoais dele pra você, nada de conversa fiada, perda de tempo com um papo que não interesse pra sua história, seu raciocínio.
E vocês passam assim dez, quinze dias. Até que chega a um ponto limite e você não consegue deixar de ouvir a piada que ele conta, não deixa de comentar como o dia está frio, e até começa a perguntar sobre um ou outro membro da família dele que você por ventura conheceu.
Eu, particularmente, demoro bem menos que quinze dias pra me render a conversas assim, pergunto não só dos familiares que conheci, mas também dos que ele por acaso comentou que tem, não quero saber só se se alimentou bem, dormiu bem, teve febre ou dor, se está com falta de ar, essas coisas. Acabo falando de mim mesma, acabo querendo saber se ele tem algo mais que queira dizer. Não me transformo num muro das lamentações onde ele tem direito de chorar todas as suas mágoas, mas tenho a disposição de ouvir até o fim aquela pergunta que ele tem a fazer e tentar responder decentemente, tentar mostrar o que há por trás daquelas frases feitas do tipo “Estamos cuidando do seu caso” ou “A gente ta tratando o problema do senhor”. Na maioria das vezes eles querem mais que saber que estão em boas mãos, querem entender o que está acontecendo, por que as coisas estão sempre as mesmas, ou por que pioraram de repente. Não custa nem dez minutos a mais, algumas poucas vezes por semana, inteirá-lo da própria condição.
Talvez eu me exceda nos meus cuidados e nas minhas preocupações, talvez eu deixe passar outros aspectos importantes estando atenta demais ao que o paciente tem a dizer e de menos ao que eu ainda tenho que raciocinar e estudar para entender um caso, talvez eu passe por sérias dificuldades e encontre muitos problemas pela frente por me envolver tanto. Mas por enquanto tem valido a pena. E tem sido sincero e espontâneo, não acontece com qualquer paciente, só com aqueles com quem eu realmente me identifico.
Espero achar a dose certa. Para que eu nunca beire a frieza e para que esses meus excessos nunca sejam um inconveniente, interferindo negativamente na minha conduta ou trazendo a mim ou ao paciente qualquer tipo de prejuízo. Aos poucos vou aprendendo.

Um comentário:

 Amelie disse...

Eu queria poder dizer palavras tão bonitas ou de mesmo conforto, como você disse pra mim...
... mas infelizmente, sou adepta do mesmo erro.
Eu só posso lhe dizer que, na minha opnião, isso tem te feito uma média impar e muito melhor que muitos que existem ou virão a existir :)
Eu admiro e invejo!